Lições do Rio Grande: referencial curricular para as escolas estaduais. Apreciação da Faculdade de Educação da UFRGS
A Faculdade de Educação da UFRGS, envolvida e comprometida com a qualificação da educação escolar brasileira e gaúcha, tem contribuído com avaliações, apreciações e análises de propostas relacionadas à política educacional, das quais vale mencionar as que versaram sobre: a implementação do “calendário rotativo” na rede estadual do Rio Grande do Sul, em 1993; os parâmetros curriculares nacionais, em 1996; a proposta de plano nacional de educação do MEC, em 1997; a proposta de plano estadual de educação da Secretaria de Estado da Educação do Rio Grande do Sul, de 2006; o documento-base da Conferência Nacional de Educação (CONAE), em 2009. Além desses, em cuja elaboração envolveu-se um grupo maior de professores, é intensa e de longa data a participação dos professores e grupos de pesquisa da Faculdade na formulação, acompanhamento, avaliação e análise de políticas educacionais do governo federal, assim como de estados e municípios brasileiros.
Em um momento em que chega às escolas da rede estadual do Rio Grande do Sul um conjunto de materiais didáticos, intitulado Lições do Rio Grande: referencial curricular para as escolas estaduais, entendemos ser oportuna nossa manifestação, com o objetivo de fazer algumas considerações a respeito das possibilidades de efetividade de uma ação inserida em política do campo curricular cujo objetivo explícito é a melhoria das condições de qualidade da Educação Básica pública estadual. A expressão que aqui inscrevemos, dada a incidência de nosso trabalho na formação de professores, volta-se, principalmente, em fazer alguns registros que permitam uma abertura de discussão no que concerne a conexões entre o/um referencial curricular e determinadas condições do trabalho docente.
Cabe esclarecer que não entraremos em análises do conteúdo dos cadernos, em suas áreas e disciplinas. Nossa compreensão é de o material possuir méritos em sua composição e conteúdo (seleção de tópicos, forma de abordagem, uso de bibliografia de referência), assim como outros recursos pedagógicos à disposição das escolas públicas brasileiras na atualidade, como, por exemplo, os livros dos programas nacionais de livro didático e biblioteca na escola ou inúmeros kits pedagógicos que vem sendo produzidos pelas secretarias do Ministério da Educação e distribuídos pelo país. Reiteramos, pois, que nossos registros sobre essa política curricular são de ordem mais geral.
Primeiro registro: autonomia da escola. Na introdução de todos os cadernos do Lições do Rio Grande, é afirmado que “A autonomia pedagógica da escola consiste na liberdade de escolher o método de ensino, em sua livre opção didático-metodológica, mas não no direito de não ensinar, de não levar os alunos ao desenvolvimento daquelas habilidades e competências cognitivas ou de não abordar aqueles conteúdos curriculares [habilidades e competências cognitivas e conteúdos mínimos do referencial Lições do Rio Grande]”. Retornamos, neste quesito, ao princípio da liberdade de ensino, ou liberdade de cátedra, inscrito na legislação brasileira das décadas de 1930-1960, quando se entendia que a autonomia dos professores se restringia à escolha de métodos e de orientações teóricas mais gerais das disciplinas, mas não dizia respeito à escolha de conteúdos. Na própria introdução dos cadernos é reconhecido o elitismo e a seletividade escolares desse período, então: a que serve este saudosismo num período de “escola para todos”? O reenquadramento da margem de autonomia das escolas é reconhecido pelo propositor, a Secretaria de Estado da Educação (SE/RS). Portanto, não estamos diante de referenciais curriculares, ou, pelo menos, estamos frente a referenciais curriculares e conteúdos mínimos/básicos, os quais nenhum professor pode se furtar de levar em conta e, portanto, nenhuma escola pode deixar de fora de suas propostas pedagógicas e planos de estudo. As políticas curriculares, assim como as demais, mas talvez de modo mais sensível, para serem implementadas, dependem de adesão por parte dos que vão implementá-las – neste caso, dirigentes escolares e professores; lembremos que estamos tratando de uma política que chega às escolas encontrando um legado, que não será suplantado apenas pela afirmação de que não se negocia a adoção dos conteúdos propostos. É claro que nossa defesa é a da autonomia da escola – pedagógica, administrativa e financeira -, mas, além disso, queremos sublinhar a concepção ingênua de extinguir certa autonomia e objetivar instaurar outra por uma declaração e pela disponibilização de cadernos, estando ausentes condições indispensáveis para a efetividade da política. Outro aspecto diz respeito às concepções pedagógicas em si, essas se constituem em referenciais que reúnem, pelo menos, as dimensões antropológica, axiológica e metodológica, portanto, os conteúdos são indissociáveis dessas dimensões
. Propostas pedagógicas e planos de estudo são muito mais complexos que a reunião de conteúdos, podem ser tidos como construções de sentido em que conteúdos estão articulados a teorias, metodologias e práticas, o qual não prescinde, ao contrário, requer, um nível de discernimento e autonomia dos educadores que não se restringe a meras técnicas de trabalho.
Segundo registro: referenciais curriculares ou propostas pedagógicas e condições do trabalho pedagógico. São amplos os itens que compõe as condições indispensáveis a um trabalho pedagógico eficaz. Valorização dos profissionais da educação, disponibilidade – em quantidade e qualidade – de insumos pedagógicos e adequada infra-estrutura física das escolas estão entre eles. A garantia destes quesitos exige gastos públicos, os quais, no Brasil e no Rio Grande do Sul, estão muito aquém do necessário para recuperar déficits, os mais recentes ou os historicamente acumulados, de condições de qualidade da educação escolar. A qualidade da educação escolar tem ficado, de fato, à mercê de sucessivos ajustes fiscais do estado do Rio Grande do Sul.
As escolas estaduais gaúchas recebem um repasse anual de recursos financeiros do governo estadual, que lhes disponibiliza, em média, 30 reais por aluno por ano. Esse é o principal recurso com o qual conta a maioria das escolas, fato que desnuda as limitadíssimas possibilidades de prover os estabelecimentos de ensino de certos insumos para um trabalho pedagógico de acordo com os requisitos de qualidade da contemporaneidade.
Outro fator é que o valor mínimo de remuneração (que não se confunde com piso salarial ou básico) pago a um professor da rede pública estadual, para 20h, é de R$ 510,00, valor que é um dos menores do país. Acresce-se a isso a descaracterização da carreira do magistério, pela prática, há anos, de fixação de um salário básico de baixíssimo valor, o que nivela os salários e, portanto, desacredita esforços de qualificação dos docentes (pelo menos no nível deste justo reconhecimento, de caráter monetário). É de R$ 336,19 o valor do salário básico do magistério, valor-base, sobre o qual são calculados os diferenciais de nível e classe, bem como de várias gratificações. Neste contexto, é importante lembrar que a Constituição Estadual determina que sejam gastos 35%, no mínimo, da receita líquida de impostos do governo estadual na manutenção e desenvolvimento do ensino. Nos últimos anos, este percentual não tem sido aplicado, com perdas em 2008 e 2009 superiores a um bilhão de reais em cada ano. Não podemos deixar de manifestar a indignação pelo descumprimento de um gasto mínimo em educação de 35% da receita de impostos, opção feita na assembléia constituinte gaúcha; que lições de cidadania podem dar governos que descumprem mandamentos elaborados no bojo da democracia representativa? O governo não é livre para escolher gastar ou não gastar o que está determinado na Constituição Estadual. A rede estadual foi encolhendo nos últimos anos: de 1996 para 2008, passou de um atendimento de 65% para 57% da matrícula na Educação Básica pública gaúcha. Com a reorganização da rede estadual no governo atual, foram fechadas escolas, foi incentivada a municipalização da pré-escola, foi aumentada a proporção de número de alunos por sala de aula, foi reorganizada a distribuição de funções no âmbito escolar. O que tem se mostrado visível é a ligação desses ajustes com as razões do ajuste fiscal do estado, permanece invisível a maior disponibilidade de recursos para a rede pública de ensino estadual, bem como as razões pedagógicas ou de eficácia das ações públicas nestes movimentos. Os referenciais curriculares chegam às escolas neste contexto que dissocia o que é esperado do trabalho docente para promover certas aprendizagens de habilidades e competências e o que o governo estadual está disposto a investir na qualificação da educação e na valorização dos profissionais da educação pública estadual. Nenhum material tem o poder de, isoladamente, mudar de modo significativo a qualidade do ensino, estando atrelado a outras condições - estruturais, materiais, salariais, entre outras. Um exame dos gastos estaduais em educação não revela um movimento de evolução positiva na oferta dessas condições, o que também põe em xeque as possibilidades de efetividade do Lições do Rio Grande, pelo menos nos objetivos a que se propõe.
Terceiro registro. Referenciais curriculares e políticas de formação inicial e continuada de professores. A formação inicial e continuada de professores é também requisito da qualidade da educação escolar e ganha neste texto menção específica pela ligação mais direta que tem com o Lições do Rio Grande, sem deixar de lado o que foi dito no registro anterior. O magistério da rede estadual gaúcha é bastante qualificado em termos de titulação. Dos quase 75 mil professores ativos em 2009, 43% possuíam licenciatura plena e 39% tinham pós-graduação. Sem dúvida, os diferenciais de salários entre os níveis da carreira constituíram incentivo para que o magistério buscasse sua qualificação, além da proliferação de diversificadas formas de acesso às licenciaturas e à pós-graduação nos anos mais recentes. Sem entrar no mérito do conteúdo de diferentes diretrizes ou referenciais – sejam diretrizes curriculares nacionais, parâmetros curriculares nacionais ou referenciais curriculares da rede estadual do Rio Grande do Sul ou propostas pedagógicas de escolas – nos parece urgente a abertura de diálogo para discutir política(s) de formação de professores. Propomos um diálogo interinstitucional e intergovernamental - incluindo, pelo menos, governo estadual, governos municipais, universidades e demais instituições formadoras de professores, entidades representativas das instituições formadoras de profissionais da educação, profissionais da educação e instâncias que os representam, conselhos escolares, conselhos de educação - no sentido de formulação de políticas de formação de professores e demais profissionais da educação, no bojo de um projeto de educação inscrito na proposta de constituição de um sistema nacional de educação.
O sucesso da implementação de políticas curriculares de governos ou de instituições está estreitamente ligado a políticas que incidam na formação docente – anterior ou concomitante ao exercício profissional –, bem como na disponibilização de outras condições, das quais fazem parte certos padrões básicos de qualidade da educação. Um conjunto de lições, isolado, não dá conta de iniciar uma inflexão expressiva no trabalho docente.
É nessa circunstância que propomos o debate e que convocamos o compromisso público dos candidatos ao governo do estado para com essa futura intervenção coletiva.
Comissão de sistematização: Nalu Farenzena, Juca Gil, Paola Zordan, Marise Amaral, Nestor Kaercher.
Porto Alegre, 15 de julho de 2010.
Johannes Doll - Diretor da Faculdade de Educação
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