domingo, 6 de julho de 2014

Marilena Chaui - Democracia, violência e participação

Porto Alegre, 7/12/2011
Palestra do Debates Capitais da Câmara

I.
Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam liberdade e competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que há uma redução da lei à potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da maioria; em terceiro, que há uma identificação entre a ordem e a potência dos poderes executivo e judiciário para conter os conflitos sociais, impedindo sua explicitação e desenvolvimento por meio da repressão; e, em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida, no plano legislativo, pela ação dos representantes, entendidos como políticos profissionais, e, no plano do poder executivo, pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado. A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.

Ora, há, na prática democrática e nas ideias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores do que o liberalismo percebe e deixa perceber.

Que significam as eleições? Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder, elas simbolizam o essencial da democracia, ou seja, que o poder não se identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio que, periodicamente, os cidadãos preenchem com representantes, podendo revogar seus mandatos se não cumprirem o que lhes foi delegado para representar. Esse significado das eleições nos leva a compreender por que somente na democracia se torna claro o princípio republicano da separação entre o público e o privado. De fato, com a ideia e a prática de soberania popular, na democracia se distinguem o poder e o governo – o primeiro pertence aos cidadãos, que o exercem instituindo as leis e as instituições políticas ou o Estado; o segundo é uma delegação de poder, por meio de eleições, para que alguns (legislativo, executivo, judiciário) assumam a direção da coisa pública. Em outras palavras, somente na democracia os governantes não podem identificar-se ao poder, nem apropriar-se privadamente dele.

Que significam as ideias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei? Elas vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma comunidade uma e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida e que as divisões são legítimas e devem expressar-se publicamente. Em outras palavras, a democracia é o único regime político que considera o conflito não apenas legítimo, mas também necessário, não é algo que precisa ser exorcizado, ocultado ou terminado, mas aquilo que vivifica o regime político, pois, ao contrário de qualquer outra forma política, a democracia tem a peculiaridade extraordinária de ser a única na qual o conflito é constitutivo de seu modo de ser. O conflito não é obstáculo; é a constituição mesma do processo democrático. Essa talvez seja uma das maiores originalidades da democracia.

Uma segunda característica da democracia é a de ser o único regime político que não se apóia na noção de privilégio, mas na ideia de direito. Não apenas o direito como Estado de Direito, isto é, como definição e garantia jurídica de alguns direitos, e sim como criação de direitos novos. Por seu vínculo constitutivo com o conflito, a democracia não cessa de fazer surgir novos sujeitos políticos, que emergem dos conflitos e são criadores de direitos novos. Ela é, fundamentalmente, processo de criação de direitos (o que também é uma das suas originalidades) e, por isso mesmo, é uma forma política aberta ao tempo e à história.

Uma terceira característica da democracia, justamente porque opera com o conflito e com a criação de direitos, é a de não se confinar a um setor específico da sociedade no qual a política se realiza – o Estado –, mas determina a forma das relações sociais e de todas as instituições, ou seja, é o único regime político que é também a forma social da existência coletiva. Ela institui a sociedade democrática.

Por isso mesmo, numa democracia concreta, as ideias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia.

O que é um direito? Um direito difere de um privilégio, assim como de uma necessidade ou carência e de um interesse. De fato, um privilégio é algo particular, possuído por apenas um indivíduo, um grupo ou uma classe social com a exclusão de todos os outros; uma necessidade ou carência também é algo particular e específico. Necessidades ou carências, assim como interesses, tendem a ser conflitantes porque exprimem as especificidades de diferentes grupos e classe sociais. Um direito, porém, ao contrário de privilégios, necessidades, carências e interesses, não é particular e específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais.

Dizemos, então, que uma sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando instituem direitos e que essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como um poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes. Que os direitos são uma instituição e política é evidente pelo simples fato de que existem declarações de direitos. Em outras palavras, direitos são declarados porque não são um fato ou um dado da natureza e sim um efeito da ação humana. Todavia, a simples declaração não torna um direito existente. Examinemos o que se passou com os três direitos fundamentais que definem a democracia desde a sua origem: igualdade, liberdade e participação nas decisões.

A igualdade declara que, perante as leis e os costumes da sociedade política, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira. Ora, a evidência histórica nos ensina que a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais. Seu sentido e importância encontram-se no fato de que ela abriu o campo para a criação da igualdade por meio das exigências e demandas dos sujeitos sociais. Por sua vez, a liberdade declara que todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Ora, aqui também, a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela prática política. Tanto é assim que a modernidade agiu de maneira a ampliar a ideia de liberdade: além de significar liberdade de pensamento e de expressão, também passou a significar o direito à independência para escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge, etc. As lutas políticas fizeram com que, na Revolução Francesa de 1789, um novo sentido viesse acrescentar-se aos anteriores quando se determinou que todo indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. A seguir, com os movimentos socialistas, acrescentou-se à liberdade o direito de lutar contra todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social, econômica, cultural e política. Finalmente, o mesmo se passou com o direito à participação no poder, que declara que todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas, votando ou revogando decisões. O significado desse direito só se tornou explícito com as lutas democráticas modernas, que evidenciaram que nele é afirmado que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria sociedade.

Em suma, é possível observar que a abertura do campo dos direitos, que define a democracia, explica por que as lutas populares por igualdade e liberdade puderam ampliar os direitos políticos (ou civis) e, a partir destes, criar os direitos sociais – trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer, cultura –; os direitos das chamadas “minorias” – mulheres, idosos, negros, homossexuais, crianças, índios –; o direito à segurança planetária – as lutas ecológicas e contra as armas nucleares; e, hoje, o direito contra as manipulações da engenharia genética. Por seu turno, as lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis: direito de opor-se à tirania, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade (associações, sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela publicidade das decisões estatais.
Eis porque, na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e populares, classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um poder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado. A democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo porque pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões, suas diferenças internas, seus conflitos e por isso, a cada passo, exige a ampliação da representação pela participação, o que leva ao surgimento de novas práticas, que garantam a participação como ato político efetivo, que aumenta a cada criação de um novo direito. Em outras palavras, só há democracia com a ampliação continua da cidadania. Por esse motivo, a cidadania, que nas chamadas democracias liberais se definem apenas pelos direitos civis, numa democracia social real, ao contrário, amplia o sentido dos direitos, abrindo um campo de lutas populares pelos direitos econômicos e sociais, opondo-se aos interesses e privilégios da classe dominante. A democracia propicia uma cultura da cidadania fundada na prática da participação.

Ora, o direito à participação encontra, hoje, obstáculos, sob os efeitos da divisão social entre dirigentes e executantes ou a ideologia da competência técnico-científica, isto é, a afirmação de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Iniciada na esfera da produção econômica, essa ideologia propagou-se para a sociedade inteira que vê, assim, a divisão social das classes ser sobre-determinada pela divisão entre “competentes” que, supostamente, sabem e “incompetentes” que nada sabem e apenas executam ordens. Fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimulam diariamente, essa ideologia invadiu a política, que passou a ser considerada uma atividade reservada para técnicos ou administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos. Dessa maneira, não só o direito à representação política (ser representante) diminui porque se restringe aos competentes, os quais, evidentemente, pertencem à classe economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos. Enfim, não podemos minimizar o obstáculo ao direito à participação política posto pelos meios de comunicação de massa, que inviabilizam o direito à informação – não só o direito de recebê-la como ainda o de produzi-la e fazê-la circular. Na medida em que as mídias são empresas capitalistas, produzem (não transmitem) informações de acordo com os interesses privados de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político, criando obstáculos ao direito à verdadeira participação política.

A essas dificuldades postas pelo capitalismo precisamos, agora, acrescentar as dificuldades específicas que a sociedade brasileira coloca para a instituição de uma sociedade democrática.

II.
Antes de mais nada, examinemos brevemente a autoimagem da sociedade brasileira ou o seu mito nuclear, qual seja, o mito da não-violência.

De fato, há no Brasil um mito poderoso, o da não-violência brasileira, isto é, a imagem de um povo generoso, alegre, sensual, solidário que desconhece o racismo, o sexismo, o machismo, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por suas escolhas sexuais, etc. Por que emprego a palavra “mito” e não o conceito de ideologia para referir-me à maneira como a não-violência é imaginada no Brasil? Emprego mito com os seguintes sentidos: 1) um mito opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo e que por isso são transferidas para uma solução simbólica e imaginária que torna suportável e justificável a realidade; 2) um mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a própria realidade. Em suma, o mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente; 3) um mito resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmam, isto é, um mito produz valores, ideias, comportamentos e práticas que o reiteram na e pela ação dos membros da sociedade. Em suma, o mito não é um simples pensamento, mas formas de ação e sobre ele assertam-se as bases das ideologias.
O grande mito que sustenta a imaginação social brasileira é o da não-violência. Nossa autoimagem é a de um povo ordeiro e pacífico, alegre e cordial, mestiço e incapaz de discriminações étnicas, religiosas ou sociais, acolhedor para os estrangeiros, generoso para com os carentes, orgulhoso das diferenças regionais e destinado a um grande futuro. Esse mito funda a ideologia do nacionalista do verdeamarelismo.

Como o mito da não-violência brasileira pode persistir sob o impacto da violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa? Ora, é justamente no modo de interpretação da violência que o mito encontra meios para conservar-se. O mito da não-violência permanece porque graças a ele admite-se a existência de fato da violência e pode-se, ao mesmo tempo, fabricar explicações para denegá-la no instante mesmo em que é admitida. Mencionarei, brevemente, alguns mecanismos de conservação ideológica dessa mitologia.

O primeiro mecanismo é o da exclusão: afirma-se que a nação brasileira é não-violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação (mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um nós-brasileiros-não-violentos e um eles-não-brasileiros-violentos. “Eles” não fazem parte do “nós”.

O segundo mecanismo é o da distinção: distingue-se o essencial e o acidental, isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento efêmero, passageiro, uma “epidemia” ou um “surto” localizado na superfície de um tempo e de um espaço definidos, superável e que deixa intacta nossa essência não-violenta.

O terceiro mecanismo é jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da delinquência e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque à propriedade privada (furto, roubo e latrocínio, isto é, roubo seguido de assassinato). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem são os “agentes violentos” (de modo geral, os pobres) e legitimar a ação (esta sim, violenta) da polícia contra a população pobre, os negros, as crianças de rua e os favelados. A ação policial pode ser, às vezes, considerada violente, recebendo o nome de “chacina” ou “massacre” quando, de uma só vez e sem motivo, o número de assassinatos é muito elevado. No restante das vezes, porém, o assassinato policial é considerado normal e natural, uma vez que se trata de proteger o “nós” contra o “eles”.

O quarto mecanismo é sociológico: atribui-se a “epidemia” de violência a um momento definido do tempo, aquele no qual se realiza a “transição para a modernidade” das populações que migraram do campo para a cidade e das regiões mais pobres (norte e nordeste) para as mais ricas (sul e sudeste). A migração causaria o fenômeno temporário da anomia, no qual a perda das formas antigas de sociabilidade ainda não foram substituídas por novas, fazendo com que os migrantes pobres tendam a praticar atos isolados de violência que desaparecerão quando estiver completada a “transição”. Aqui, não só a violência é atribuída aos pobres e desadaptados, como ainda é consagrada como algo temporário ou episódico.

Finalmente, o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que permitem dissimular comportamentos, ideias e valores violentos como se fossem não-violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção natural à natural fragilidade feminina. Proteção inclui a ideia de que as mulheres precisam ser protegidas de si próprias, pois, como todos sabem, o estupro é um ato feminino de provocação e sedução; o paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar a natural inferioridade dos negros; a repressão contra os homossexuais é considerada proteção natural aos valores sagrados da família e, agora, da saúde e da vida de todo o gênero humano ameaçado pela Aids, trazida pelos degenerados; a destruição do meio ambiente é orgulhosamente vista como sinal de progresso e civilização, etc.

Em resumo, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda ideia que reduza um sujeito à condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais do que isto, a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira. Dessa maneira, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas, políticas e sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o sexismo, a intolerância religiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e a violência aparece como um fato esporádico de superfície. Em outras palavras, a mitologia e os procedimentos ideológicos fazem com que a violência que estrutura e organiza as relações sociais brasileiras não possa ser percebida, e, por não ser percebida, é naturalizada e essa naturalização conserva a mitologia da não-violência. Em outras palavras, a persistência do mito decorre da própria estrutura da sociedade brasileira como sociedade autoritária.

III.
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público e, tendo o centro da hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação de mando e obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. Em suma: micropoderes capilarizam em toda a sociedade de sorte que o autoritarismo da e na família se espraia para a escola, as relações amorosas, o trabalho, a mídia, o comportamento social nas ruas, o tratamento dados aos cidadãos pela burocracia estatal, e vem exprimir-se, por exemplo, no desprezo do mercado pelos direitos do consumidor (coração da ideologia capitalista) e na naturalidade da violência policial.

Podemos resumir, simplificadamente, os principais traços de nosso autoritarismo social considerando que a sociedade brasileira se caracteriza pelos seguintes aspectos:

- estruturada segundo o modelo do núcleo familiar, nela se impõe a recusa tácita (e, às vezes explícita) para fazer operar o mero princípio liberal da igualdade formal e a dificuldade para lutar pelo princípio socialista da igualdade real: as diferenças são postas como desigualdades e, estas, como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, dos negros, índios, migrantes, idosos) ou como monstruosidade (no caso dos homossexuais);
- estruturada a partir das relações familiares de mando e obediência, nela se impõe a recusa tácita (e às vezes explícita) de operar com o mero princípio liberal da igualdade jurídica e a dificuldade para lutar contra as formas de opressão social e econômica: para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. A lei não deve figurar e não figura o pólo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca definindo direitos e deveres dos cidadãos porque a tarefa da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas. O poder judiciário é claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social;
- a indistinção entre o público e o privado não é uma falha ou um atraso, mas é, antes, a forma mesma de realização da sociedade e da política: não apenas os governantes e parlamentares praticam a corrupção sobre os fundos públicos, mas não há a percepção social de uma esfera pública das opiniões, da sociabilidade coletiva, assim como não há a percepção dos direitos à privacidade e à intimidade. Do ponto de vista dos direitos sociais, há um encolhimento do espaço público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do espaço privado;
- forma peculiar de evitar o trabalho dos conflitos e contradições sociais, econômicas e políticas enquanto tais, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem mítica da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Não são ignorados e sim recebem uma significação precisa: conflitos e contradições são considerados sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral;
- forma peculiar de bloquear a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classe sociais diferenciados e/ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas um conjunto de ações determinadas que se traduzem numa maneira determinada de lidar com a esfera da opinião: a mídia monopoliza a informação, e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como atraso ou ignorância;
- naturalização das desigualdades econômicas e sociais, do mesmo modo que há naturalização das diferenças étnicas, postas como desigualdades raciais entre superiores e inferiores, das diferenças religiosas e de gênero, bem como naturalização de todas as formas visíveis e invisíveis de violência;
- fascínio pelos signos de prestígio e de poder: uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição, o caso mais corrente sendo o uso de “Doutor” quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior; “doutor” é o substituto imaginário para os antigos títulos de nobreza; manutenção de criadagem doméstica cujo número indica aumento de prestígio e de status, etc.

A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos, negros e índios, a exploração do trabalho infantil e dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos “miseráveis”. A existência de crianças de rua é vista como “tendência natural dos pobres à criminalidade”. Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham (se não forem professoras ou assistentes sociais) são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.

Em outras palavras, a sociedade brasileira é oligárquica e está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, portanto, está estruturada de maneira a bloquear a esfera democrática dos direitos. Podemos, assim, avaliar o quanto tem sido difícil e complicado instituir uma sociedade democrática no Brasil e dar pleno sentido à cidadania.

IV.
Sabemos todos que o socialismo foi colocado sob suspeita. Em primeiro lugar, porque foi interpretado como um economicismo, isto é, como a suposição de que o socialismo decorre exclusivamente da mudança das relações de produção como consequência necessária do desenvolvimento capitalista. Mas, em segundo lugar, porque foi interpretado como politicismo, isto é, como a suposição de que o socialismo vem exclusivamente pela ação de grupos armados, que realizam atos de vontade revolucionária atraindo para si a maior parte da sociedade.

No primeiro caso, abandona-se a ideia de ação política, substituída pela de uma mecânica incrustada no interior da história. Esta parece realizar-se automaticamente, embora, de maneira paradoxal, também se espere a presença de um agente para “tocar a máquina” da história. Como esse agente demora a aparecer ou nunca aparece e, ao mesmo tempo, tem-se a certeza de que a “máquina” irá funcionar por si mesma, apesar da ausência do agente, afirma-se que é preciso dar uma direção à mecânica histórica e o agente ausente é substituído pelo partido revolucionário de vanguarda. No segundo caso, tem-se o contrário: supõe-se, agora, que mesmo sem alterar as relações de produção vigentes, a ideologia e as relações políticas estabelecidas, bastará vontade política para passar à ação imediata, por meio das armas, para que o socialismo se instaure.
Se o socialismo foi colocado sob suspeita por causa desses dois equívocos gêmeos, nem por isso as críticas que lhe têm sido feitas são corretas.

A primeira crítica, vinda da direita, identifica o socialismo e totalitarismo. Esse equívoco é muito mais profundo do que parece. Se é verdade que essa identificação é ideológica e feita propositadamente para fins de propaganda, o engano não está nessa identificação. O engano reside em outro lugar, qual seja, na incapacidade para oferecer o conceito de totalitarismo, pois somente a crítica de esquerda pode chegar a esse conceito. O que é o totalitarismo?

O totalitarismo é uma formação social na qual Estado e sociedade são postos como idênticos – donde a fórmula “Estado total” –, a identidade entre ambos sendo obtida por meio do Partido único, definido como representante da totalidade do povo e do qual todos os sujeitos sociais são obrigatoriamente membros ou militantes. Como o Partido se organiza sob a forma de células, a mesma organização se impõe à sociedade, de sorte que o Estado é um imenso organismo cujas funções são realizadas por suas células sociais-partidárias. O Estado se apresenta como origem da sociedade, como um poder capaz de instituí-la a partir do zero. Matéria sem forma, a sociedade vem à existência pela ação criadora do Estado, que lhe dá organização e se põe como centro e sentido dela.

Enquanto o liberalismo se apóia na ideia de que a sociedade (isto é, o mercado) se organiza por si mesma (pela livre competição entre os proprietários privados independentes) e se autorregula (pelos mecanismos do mercado), precisando do Estado apenas para legislar essa autorregulação e arbitrar conflitos que possam ameaçar a dominação vigente – ou a exploração econômica -, o totalitarismo afirma o Estado como senhor da economia e decreta a abolição da luta de classes porque a propriedade privada dos meios de produção tornou-se propriedade estatal desses meios. O Estado deixa de ser governo e se torna administração planificada, isto é, um órgão técnico de gestão, operado por uma organização hierárquica, que engendra uma camada burocrática sempre em expansão, detentora de todos os meios de decisão e de coerção, pois é por meio dela que o Partido e o Estado se tornam idênticos e que o Estado se torna onipresente. De um lado, o Estado encarna o universal e absorve a sociedade: o Estado é a sociedade. De outro, o Partido encarna a “linha correta” e absorve todos os indivíduos: o Partido é o povo. O Estado se apresenta como origem da lei – a justiça e a coerção, a polícia e a repressão – enquanto o Partido se apresenta como origem do saber – o conhecimento da história, do presente e do futuro. Por isso torna-se impossível diferenciar Estado, sociedade e Partido: formam uma totalidade sem fraturas. Mais que totalidade, o que se tem é a imagem da unidade perfeita. Por isso mesmo, o inimigo só pode ser o dissidente, isto é, aquele que recusa ou escapa da unidade. Ou, como se costuma dizer, o inimigo é o “desvio”.

Ora, confrontado com o liberalismo, o que é, realmente, o socialismo?

Economicamente, o socialismo se define pela propriedade social dos meios sociais de produção. Isso significa, de um lado, que é conservada e garantida a propriedade privada individual como direito aos bens não somente necessários à reprodução da vida, mas sobretudo indispensáveis ao seu desenvolvimento e aperfeiçoamento; e, de outro, que o trabalho deixa de ser assalariado, portanto, produtor de mais-valia, força explorada e alienada, para tornar-se uma prática de autogestão social da economia, um compromisso dos indivíduos com a sociedade como um todo. O trabalho se torna livre, isto é, expressão da subjetividade humana objetivada ou exteriorizada em produtos. Na medida em que a propriedade dos meios de produção é social, a produção é autogerida, e o trabalho é livre, deixa de haver aquilo que define nuclearmente o capitalismo, ou seja, a apropriação privada da riqueza social pela exploração do trabalho como mercadoria que produz mercadorias, compradas e vendidas por meio de uma mercadoria universal, o dinheiro.

Socialmente, define-se pelas ideias de justiça – a cada segundo suas necessidades e capacidades -, de abundância – não há apropriação privada da riqueza social -, de igualdade – não há uma classe detentora de riqueza e privilégios -, de liberdade – não há uma classe detentora do poder social e político -, de autonomia racional – o saber não está a serviço dos interesses privados de uma classe dominante -, de autonomia ética – os indivíduos são os agentes conscientes que instituem normas e valores de conduta -, e de autonomia cultural – as obras de pensamento e as obras de arte não estão determinadas pela lógica do mercado nem pelos interesses de uma classe dominante.

Essas ideias e valores, que definem o socialismo, exprimem direitos. Se compreendermos a democracia como instituição de uma sociedade democrática e o socialismo como instituição de uma política democrática, compreenderemos que somente numa política socialista os direitos, que definem essencialmente a sociedade democrática, podem concretizar-se e que somente numa sociedade democrática a prática política socialista pode efetivar-se como ação da cidadania concreta, isto é, como exercício social e político da participação.

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