Não é de hoje. Quando se fala em TVE e FM Cultura aqui no estado, a tela é sempre pintada nos mesmos tons. A paisagem vai de um vermelho de estagnação até o preto de abandono. Muitos governos passaram, outro está aí, e a sensação é de que sobram diagnósticos desanimadores, críticas interessadas e faltam propostas. Apesar do título, este texto não pretende ser uma provocação gratuita endereçada à governadora. Muito menos contém qualquer alternativa mágica para as duas principais emissoras educativas do Rio Grande do Sul (2). É um aceno público no sentido de estabelecer um diálogo a partir de um ponto-de-vista relativamente privilegiado. No lugar do conflito, a intenção é o consenso. Em vez de plantar mitos, a idéia é cultivar saídas em parceria com o Estado e a sociedade.
Comecemos pelos mitos. Guardadas as nuances e a origem dos avaliadores, a falta de rumo seria basicamente motivada pela falta de uma política de financiamento e de gestão da Fundação Cultural Piratini. O primeiro é o mais batido: a rádio e a TV são maus negócios para o Estado e os contribuintes. Custam cerca de R$ 15 milhões/ano para os cofres públicos e arrecadam menos de R$ 700 mil em apoios culturais e convênios. Isso representa um gasto mensal de R$ 1,3 milhão frente a um repasse do governo de R$ 1,2 milhão. Ou seja, de cara a conta não fecha. Somente o prédio onde está instalada sua sede custa R$ 25 mil de aluguel, pagos ao INSS, além de outros R$ 7 mil exigidos para sua manutenção. A quase totalidade do orçamento da Fundação é usada para gastos com pessoal – são cerca de 250 funcionários.
Posta nestes termos, a realidade pintada parece tenebrosa. Um caso perdido como diriam alguns deputados e formadores de opinião gaúchos. Só que Estado não faz negócios. Entre outras tarefas, arrecada tributos e presta serviços. E a missão da Fundação Piratini (mantenedora das duas emissoras) se encaixa perfeitamente na segunda. Sua função social vai muito além de render altos índices de audiência e faturar com publicidade. É ela que dá aos gaúchos uma visão de um Rio Grande pouco explorado pelas redes nacionais de TV, que têm seu umbigo encravado no eixo Rio-São Paulo e seu olhar fixo no gráfico de receita. A cerimônia de encerramento do Festival de Cinema de Gramado, os festivais da canção nativista, a posse da mesa da Assembléia, a Festa da Uva, a transparência das ações governamentais em matérias de interesse público, as campanhas de esclarecimento, um programa infantil para os pequenos, de música e entrevistas para o jovem, de informação para o consumidor.
Necessariamente, este tipo de conteúdo não dá lucro. Nem atrai a maior parte dos telespectadores. Mas como dizem os mais liberais, o papel do Estado é atuar em áreas e atividades que não atraiam a iniciativa privada ou onde não lhe interessa estar. Se for encarado por este prisma, o valor gasto pelo contribuinte gaúcho para manter uma rádio e uma TV pública é irrisório. Cerca de R$ 1,40/ano por morador ou R$ 4,40 por domicílio com receptor de TV (3). Para onde vão estes recursos? Os R$ 15 milhões citados mantêm funcionando a segunda maior rede de televisão do estado em termos de cobertura, cujo patrimônio é estimado em US$ 10 milhões. Potencialmente, a programação da TVE pode atingir 70% da população gaúcha. Seu parque técnico, que inclui cerca de três dezenas de retransmissoras espalhadas pelo interior, está avaliado em US$ 4,5 milhões. Seu acervo inclui horas de imagens que preservam momentos marcantes da história do Rio Grande do Sul. Sua grade de programação é composta por 35% de produções próprias, um percentual duas vezes maior que o de muitas TVs comerciais do Brasil e do estado.
O “problema” da gestão
O segundo mito, um problema endêmico de gestão, é alimentado por um argumento reproduzido por muitos governantes que passaram pelo Palácio Piratini. “Quem paga manda”. Com esse raciocínio em mente, o mandatário de plantão sente-se no direito de conduzir a Fundação como se fosse um instrumento de seu governo. Raramente os postos de comando são ocupados por profissionais com algum conhecimento da área. Normalmente, suas diretorias são distribuídas pelo velho jogo das alianças políticas. Como resultado, a permanência média dos presidentes foi de nove meses nos últimos quatro anos (4). Qual empresa conseguiria cumprir sua missão com tamanha rotatividade?
Conforme demonstrado acima, não é o governo quem paga pelas emissoras educativas. Logo, não é ele quem deveria mandar. No caso de uma fundação pública, o poder precisa ser dividido com a sociedade. O Conselho Deliberativo da Fundação Piratini é formado por 25 membros. Somente dois deles são indicados pelo Executivo (secretarias estaduais da Cultura e da Educação) e um pelo Poder Legislativo (Comissão de Educação da Assembléia). As vagas restantes são ocupadas por diversas representações da sociedade civil como sindicatos, associações empresariais, instituições de ensino e de imprensa, além de seis membros eleitos com contribuições relevantes à causa das comunicações e um representante dos funcionários (5).
Por mais utópico que isso possa parecer, a composição do Conselho reflete o real jogo de forças que emana da sociedade. Os debates em seu interior são muitas vezes acirrados e muitas propostas são discutidas por pessoas que não recebem remuneração para se dedicar à causa da comunicação pública. Infelizmente, as atribuições deste espaço público são podadas por uma legislação que impede o Conselho de atuar com a autonomia que lhe foi conferida. Deliberativo no nome, suas competências acabam sendo meramente consultivas de fato. Não por acaso, esta é a primeira vez em 11 anos que um chefe do governo recebe oficialmente seus representantes, dando um atestado de maturidade política e abertura ao diálogo.
Sistema público de comunicação
Em tempos de televisão digital e constituição de uma rede nacional de TV pública, acreditamos que está na hora dos gaúchos darem um passo a frente. Por que não pensar a TVE e a FM Cultura como âncoras de um inédito sistema público de comunicação que vá muito além da mera extensão do núcleo de propaganda do Poder Executivo? Por que não imaginar um consórcio de emissoras sem fins comerciais que possa explorar de forma compartilhada infra-estrutura e recursos para produção de conteúdos que promovam a cidadania e a cultura gaúchas? Por que não entender que as empresas com sede no estado podem apoiar uma rede pública nestes moldes visando um retorno de médio prazo para sua imagem institucional?
Tecnologia e recursos para isso existem. Com a implantação da TV digital no Brasil, um canal que atualmente carrega o sinal da TVE analógica poderá carregar até quatro sinais digitais com qualidade de DVD. Com pouco investimento, seria possível passar a transportar dentro do mesmo sistema de geração e retransmissão da Fundação Piratini outras três programações. Hipoteticamente, por que não oferecer um canal da TVE, outro da TV Assembléia (6), um terceiro de um consórcio de universidades e ainda uma programação eclética composta de produções independentes nacionais e regionais? Ou usar uma parte da banda de transmissão para oferecer um canal de educação a distância? Seria uma experiência pioneira no Brasil.
Juntamente com as prefeituras e outros organismos de caráter público e educativo, a Fundação Piratini lideraria um sistema com um quarto das emissoras de televisão do Estado e mais da metade das retransmissoras. Fazendo uma estimativa modesta, este grupo de veículos seria impulsionado por um orçamento anual conjunto de pelo menos R$ 50 milhões. A diversidade criada com este sistema garantiria a independência de sua gestão e a continuidade de seu financiamento.
Sistema público de televisão no RS
Origem TVs - RTVsConsiderar qualquer solução mágica para a Fundação sem levar em conta este diagnóstico e os caminhos abertos pelo futuro da comunicação pública é enveredar por um caminho já percorrido sem sucesso. O embrião para uma saída estruturante – para usar um termo caro à governadora – passa por uma proposta de ajuda financeira emergencial que o Conselho lhe apresentará na audiência desta terça à tarde. Passa também por uma articulação com a Assembléia Legislativa, prefeituras e universidades para desencadear o esforço de criação da rede de retransmissoras públicas. Passa, por fim, por um pacote de medidas que não vise apenas a redução da dívida, buscando um equilíbrio contábil passageiro e de alto custo social e político. O Conselho Deliberativo da Fundação Piratini quer discutir estas e outras questões não apenas com a governadora. Este debate precisa ser feito juntamente com o maior interessado no assunto: o povo gaúcho.
FCPRTV 1 - 27
Universidades 4 - 0
TV Câmara 1* - 0
TV Assembléia 1* - 0
TV Justiça 1* - 0
POATV (canal comunitário) 1* - 0
Demais fundações 0 - 4
Prefeituras 0 - 274
CEEE 0 - 7
Total de estações públicas 9 - 312
Total geral/UF (públ. e privadas) 34 - 538
% sobre total geral 26% - 58%
Notas
1. Jornalista. Vice-presidente do Conselho Deliberativo da Fundação Cultural Piratini – Rádio e Televisão.
2. Em agosto deste ano, comemora-se 40 anos da assinatura do convênio entre os governos federal e estadual que estabeleceu os termos para a utilização do canal 7 de Porto Alegre por uma televisão educativa.
3. Os dados de referência são da PNAD 2006, do IBGE. Total de domicílios permanentes com TV no RS: 3,408 milhões. Total de moradores nestes domicílios: 10,583 milhões.
4. De abril de 2004 até o momento, a Fundação teve cinco presidentes.
5. A nominata da gestão atual do Conselho pode ser conhecida em
http://www.tve.com.br/institucional/conselhodeliberativo/menu_conselhodeliberativo.php. 6. O orçamento da TV Assembléia, sintonizável apenas em cidades com operação de TV a cabo, já representa um terço do valor gasto com a Fundação Piratini.
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