sexta-feira, 10 de julho de 2009

Escola Cidadã – Compromisso de humanização

É pela educação que nos tornamos humanos, portanto, ela é direito de todos. Então, um bem público. Desde bebê, a aprendizagem com a mãe, irmãos, vó, é que vai fazer com que cada ser nascido humano adquira as características, valores, capacidades e domínio de tecnologia que caracterizam o humano.

“A educação tem sentido porque mulheres e homens aprenderam que é aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulheres e homens puderam se assumir como seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem” ( Freire, Pedagogia da Indignação).
A escola foi criada para acelerar a atualização histórica de cada um, garantindo aspectos que espontaneamente não estariam ao alcance de todos. Mas exatamente por tratar-se da construção humana, a aprendizagem é pessoal e irrepetível.

Só há ensino quando há aprendizagem. Nosso aluno é sujeito – detentor de vontade porque ser humano. Negar-lhe a condição de Sujeito é negar a sua condição humana. Ser detentor de vontade faz parte das especificações do próprio trabalho. Fazer com que os alunos tenham vontade de aprender, sejam sujeitos de sua própria aprendizagem, é tarefa, portanto da escola. As relações autoritárias, verticalizadas, bancárias, como denunciava Paulo Freire, negam esta condição.

Os fins humanos da educação, portanto, se relacionam com a liberdade. Aqueles que a recebem precisam participar da tomada de decisões sobre os destinos da escola e sua administração. A democracia ,entendida como mediação para a realização da liberdade em sociedade tem na gestão da escola instrumento para a população ter acesso ao exercício deste direito e, para os pequenos, à aprendizagem deste direito.

No entanto, a escola, parte do Estado apropriado por interesses privados, é majoritariamente instrumento de reprodução da sociedade de classes, ideologicamente liberal, das oportunidades iguais aos diferentes. Foi construída com critérios e parâmetros homogeneizadores que acabaram por cumprir um papel muito perverso: o de selecionar os mais competentes, os que “aproveitam as oportunidades”. Ainda mais, constituindo esta “natural exclusão” como verdade inexorável. Ficando a responsabilidade do fracasso ora com o aluno, ora com a família, em parte com os professores e seus métodos. A escola básica – que antes era acessível a poucos – quando popularizada, tornou-se importante instrumento de repressão da demanda da classe trabalhadora por vagas no Ensino Médio, na Universidade, nos melhores postos de trabalho.

O “funil” que tornou-se a escola pública com seus altos índices de reprovação e de evasão – legitimado pela hegemonia dos valores de uma sociedade “naturalmente desigual”, por isso competitiva, individualista – ajudou a retirar da grande maioria da população o direito à constituição plena de sua condição humana. É assim que democratizar a educação é condição para garantir este direito.

O Estado brasileiro pode ter caráter estatal, mas está longe de ser público. Se avaliarmos os três braços do estado: a força da repressão, o orçamento público e a norma jurídica e nos perguntarmos como são utilizados, quem decide suas prioridades, a serviço de quem estão atuando, quais os valores, pessoas, poder preservam ou reforçam – vamos encontrar um estado de fato a serviço da manutenção de privilégios, da estrutura de concentração de terra, renda e poder.

Para superar a privatização deste estado, mesmo em tempo de democracia representativa, as experiências de democracia direta, a democracia participativa tem demonstrado avanços na construção de um novo conceito de público e de cidadania, no fortalecimento da organização popular, na inversão de prioridades de atuação do estado, no controle social que inibe a corrupção e o clientelismo, na qualificação dos serviços públicos.

E a escola reproduz o estado privatizado quando pautada por relações autoritárias, verticalizadas entre escola-comunidade-professores-funcionários-alunos; quando estabelece com tempos e critérios iguais para aprender, negando a individualidade, a diferença; quando trabalha os conteúdos de forma fragmentada, com preponderância de algumas linguagens e áreas do conhecimento; quando faz avaliação classificatória e excludente. Fracassa na garantia do direito à educação, a escola pública empobrecida, com professores desvalorizados, sem tempo para estudo e planejamento, sem vagas para todos e sem suporte para a permanência com aprendizagem.

Democratizar a escola, pela concepção de público e pela concepção de processo de humanização, é compromisso de quem defende a educação como direito.

Dos Sistemas de Ensino à sala de aula, do planejamento da Educação à aplicação dos recursos, dos Congressos de Educação à Eleição de Diretores, mais do que construir mecanismos, significa assumir práticas democráticas! “A gestão democrática vai avançar na medida em que se discuta o caráter público do espaço escolar, quando os usuários decidam o destino da escola” afirma Erasto Fortes, professor doutor da Universidade Federal de Brasília. Trata-se de viver e ensinar democracia pela e na escola.

Para democratizar o acesso ao conhecimento é preciso avaliar para acolher, mudar ou confirmar procedimentos e replanejar e não para classificar, selecionar e excluir, como tem sido prática cotidiana das nossas escolas. É preciso organizar o ensino a partir da leitura da realidade, da fala da criança, da cultura da comunidade. Entender currículo como toda a vivência organizada para e com os alunos. Valorizar e dar espaço para as diferentes linguagens das artes, tecnologias, Línguas, terminando com a hegemonia de algumas áreas do conhecimento.

A Escola Que Sonhamos Pode Existir

“Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação da forma histórico-social de estar sendo, de homens e mulheres. Faz parte da natureza humana que, dentro da história, se acha em permanente processo de tornar-se.” afirmou Paulo Freire no livro A Pedagogia da Esperança. E mais: “a compreensão da história como possibilidade e não determinismo, seria ininteligível sem o sonho, assim como a concepção determinista se sente incompatível com ele, e por isso, o nega”. Apostando nisto, é que educadores ousaram ir atrás de seu sonho de escola estimulando que os sonhos de professores, alunos, pais, funcionários não docentes fossem valorizados e colocados em diálogo, para impulsionar mudanças na história da educação em Porto Alegre.

Foi assim que à frente da educação do município de Porto Alegre, no período de 1990 a 2004, colocamos em curso um processo denso de mudança da escola pública. Tratava-se de traduzir na educação o programa da Frente Popular comprometido com a democratização do Estado e concretizar a escola de qualidade social, democrática e inclusiva pela qual lutamos nos sindicatos, nas universidades, nos movimentos sociais.

Foi através da participação de professores, alunos, funcionários e pais e de espaços intensos de formação político-pedagógica que esta concretização se tornou possível.
A construção coletiva da mudança se deu a partir da constituição de uma série de instâncias de planejamento e gestão: algumas de participação direta como o momento da eleição da direção ou das assembléias gerais da escola e outras de caráter representativo como os conselhos escolares ou o Conselho Municipal de Educação.

Formou-se uma rede de gestão que permitiu à comunidade escolar a participação nas decisões desde a escola até as políticas para a educação no município.
Dois Congressos Municipais com debates desde a escola, até o plenário de delegados eleitos em todas as regiões da cidade, construíram diagnósticos e deliberaram princípios e políticas para a escola que chamamos Escola Cidadã.

Queríamos a comunidade escolar percebendo, refletindo, “constatando” os limites, as possibilidades, as dificuldades e seu desejo sobre a educação que era realizada em cada escola. “ Não se trata de impor à população explorada e sofrida que se rebele, que se mobilize, que se organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na verdade, não importa se trabalhamos com alfabetização, com saúde, com evangelização ou com todas elas, de simultaneamente com o trabalho específico de cada um desses campos, desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais, ainda, que sua situação concreta não é destino certo ou vontade de Deus, algo que não pode ser mudado”. (Pedagogia da Indignação, página 82).

Desafiamos, pois, como queria Paulo Freire, a comunidade escolar a perceber que os altos índices de evasão e repetência escolar tinham causas que não eram necessariamente vindas do que era reprovado ou evadido. Afirmava Paulo Freire na Pedagogia da Indignação: “ É importante ter claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua ação”. Tornando-os passivos e submetidos a verdades incontestáveis e reprodutoras das desigualdades.

Espaços de formação continuada tinham o papel de informar e formar para a participação dos alunos, pais, professores e funcionários e fundamentalmente problematizar práticas e conceitos da secular escola seriada: autoritária, seletiva, excludente. A formação era pensada junto à escola para atender as necessidades da caminhada de cada uma; tinha a preocupação de oportunizar a troca de experiências, o registro do trabalho de sala de aula; de dar conta de tarefas e espaços como os das equipes diretivas, dos laboratórios de aprendizagem, do professor itinerante; provocava a reflexão sobre as turmas de progressão, o trabalho dos diferentes ciclos e áreas do conhecimento.

Já em grandes seminários, trazia-se a produção teórica das universidades do mundo todo, em momentos fortes de aprendizagem e motivação.

Participação e formação foi o binômio que permitiu às escolas irem construindo novas práticas, fazendo opções avançadas, traduzindo-as em novos regimentos escolares que davam conta das diretrizes construídas coletivamente: avaliação emancipatória, currículo interdisciplinar, significativo, que proporcione o diálogo entre o saber popular e o científico, regras de convivência educativas e inclusivas, gestão democratizada.

O processo de mudança encerra um ciclo em 2000 quando as últimas escolas optam (em plebiscitos, assembléias gerais, reuniões) pela organização curricular por ciclos de formação. Foi um processo riquíssimo de muitos consensos, mas também de muita polêmica, pois não se tratava de uma mera inovação pedagógica, como muitas já vividas pelos professores, mas sim da ruptura com o paradigma da escola que preparava para o mercado, para o vestibular, com parâmetros homogeneizadores, através de avaliação seletiva e excludente. A nova escola ousava questionar a naturalização do fracasso, a formação para a competitividade e o individualismo e propõe cidadania, a inclusão de todos, o respeito à diferença, a formação de sujeitos autônomos e não meros consumidores.

Os alunos que antes eram reprovados e que acabavam evadindo, estavam agora na escola e demandavam um trabalho diferenciado. O abandono das listas de conteúdo e da fragmentação do trabalho, exigiam pesquisa, retomada dos conceitos das áreas do conhecimento, planejamento e estudos coletivos, reflexão continuada das novas práticas, dos processos e instrumentos de avaliação. Visitar as casas dos alunos, escutar as lideranças da comunidade, ouvir relatos e depoimentos trouxe aos professores a aproximação com o rico universo dos alunos, sempre marginalizado do currículo. Buscava-se a educação dialógica, que, como dizia Freire (À Sombra da Mangueira) “enquanto prática docente e discente, a educativa é uma prática gnosiológica por natureza”.

Onde “o papel do educador progressista é desafiar a curiosidade ingênua do educando par, com ele, partejar a criticidade”. Queríamos superar o tempo perdido com a memorização mecânica de conteúdos e deixar de “discursar respostas a perguntas que não nos foram feitas” (Freire, À sombra desta Mangueira). Queríamos produzir aprendizagem significativa, porque resultado do diálogo da cultura do aluno e as provocações da escola e vice-versa.

Os investimentos em formação, o aporte humano e material que as escolas conquistaram (professores especializados em Artes e Educação Física desde o I Ciclo, duas Línguas Estrangeiras a partir do II Ciclo, o ensino de Filosofia no III Ciclo, os Laboratórios de Aprendizagem, os ambientes informatizados com estagiários para apoio, a presença de professores itinerantes que permitem um trabalho mais individualizado, as turmas de progressão, menores e com tempos e trabalho diferenciado, as Salas de Integração e Recursos dotadas de professores de Educação Especial para atendimento dos alunos integrados); os salários e condições de trabalho dignos dos professores, sua qualificação técnica (mais de 80% com nível superior e destes 50% com pós-graduação e muitos com mestrado) - são todos elementos poderosos para o enfrentamento de forma criativa e competente dos novos e positivos problemas que tínhamos na escola.

Passou a ser condição a prática sistemática da avaliação do trabalho, das enturmações, dos avanços obtidos, dos insucessos, das práticas individuais em sala de aula e as coletivas. Procurar identificar onde estão as principais dificuldades ou onde há lacunas de formação, de debate e pesquisa para responder aos problemas da não aprendizagem. Perceber o quanto a gestão democrática desta escola consegue identificar e corrigir rumos do trabalho, produzir o conhecimento novo necessário à escola cidadã.

A Escola Cidadã é a escola da esperança porque assume inteiramente sua função humanizadora. Aprendemos ao construí-a que Paulo Freire tinha razão quando dizia que mudar é difícil mas é possível.

“ A matriz da esperança é a mesma da educabilidade do ser humano: o inacabamento de seu ser de que se tornou consciente. Seria uma agressiva contradição se, inacabado e consciente de seu inacabamento, o ser humano não se inserisse num permanente processo de esperançosa busca. Este processo é a educação. Mas, precisamente porque nos achamos submetidos a um sem número de limitações – obstáculos difíceis de serem superados, influências dominantes de concepções fatalistas da História, o poder da ideologia neoliberal, cuja ética perversa se funda nas leis de mercado – nunca talvez tenhamos tido mais necessidade de sublinhar, na prática educativa, o sentido da esperança do que hoje.” ( Freire, Pedagogia da Indignação)

Sofia Cavedon Nunes / Vereadora PT

Bibliografia:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação - São Paulo: editora UNESP, 2000
SILVA, Luis Heron (org). Escola Cidadã – Teoria e Prática. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
PARO, Vitor Henrique. Reprovação Escolar – renúncia à educação. São Paulo: Xamã, 2001.
SMED, Cadernos Pedagógicos. Falas do cotidiano; vivências nos ciclos de formação. Porto Alegre: SMED. 1998
NOSELLA, Paolo. A escola de Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992
FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Editora Olho d'Água, 1995
MENDONÇA, Erasto Fortes. A regra e o jogo: democracia e patrimonialismo na educação brasileira – Campinas, São Paulo :FE/UNICAMP; R. Vieira 2000.

Retornar ao Blog da Sofia Cavedon.

Nenhum comentário:

Postar um comentário